Em 22 de junho de 2013, em Donetsk, Ucrânia, data da comemoração da vitória dos soviéticos na Segunda Guerra Mundial, começo a copiar o primeiro capítulo de um romance em russo, língua que não domino, em uma máquina de escrever de caracteres cirílicos. O romance é Estrelas Vermelhas, de Fyodor Berezin, escrito nos anos noventa. Nele, o autor reescreve o final da Guerra Fria como se os soviéticos tivessem vencido. Os espectadores observam quase sempre de longe, em silêncio até que um homem alto, de barba e bigode brancos se aproxima – era o autor em pessoa.  Menos de um ano depois, descubro que Berezin é um dos ministros de defesa da DPR, República Popular de Donetsk, a organização que assumiu o controle de região. No mesmo dia, fico sabendo que o espaço em que eu fazia a ação acabava de ser invadido por um grupo armado.

 

A performance fazia parte da exposição Turborealism, breaking ground, que reunia trabalhos meus e de outros cinco artistas, criados a partir de uma residência realizada em Donetsk  em julho e agosto de 2012.  A proposta era de que nos debruçássemos sobre um peculiar movimento literário chamado Turborrealismo – espécie de ficção científica dos anos finais da URSS, que ecoava os temores de uma guerra atômica.

 

Enquanto procurávamos entender as contradições da cidade (que, segundo dizem, Josef Stalin afirmou ser a sua favorita, uma vez que era uma cidade sem passado), mal imaginávamos que pouco tempo depois Donetsk se tornaria um campo de batalha em uma Ucrânia cindida e tensa, alvo de interesses internacionais dos mais diversos e que a linha entre realidade e ficção científica se tornaria progressivamente mais difícil de definir.

 

No dia 09 de junho, uma milícia armada tomou posse das instalações da Izolyatsia, ONG em atividade desde 2010, localizada em uma antiga fábrica de Donetsk, onde aconteciam projetos de arte contemporânea, mostras de cinema, projetos educacionais e iniciativas direcionadas à comunidade.

 

No dia seguinte, a propriedade foi saqueada e equipamentos, pertences pessoais dos funcionários e itens do cofre foram levados embora. Enquanto os comunicados oficiais alegavam que o espaço seria utilizado para armazenar “ajuda humanitária” que estava chegando da Rússia, a mídia local, leal à DPR, afirmava que a instituição era uma organização anti-russa que encorajava a produção de “arte decadente”, termo frequentemente utilizado no período soviético para formas de arte que não se enquadravam no realismo socialista.

 

Essa não foi a primeira vez que a Izoyatsia entrou em conflito com os pró-russos da região. Em abril de 2013, meses antes do início dos protestos em Kiev, eles já haviam sofrido ameaças. Às vésperas de um encontro que se propunha a ensinar representantes de ONGs ucranianas a implementar novas mídias para desenvolver projetos socioculturais, o espaço foi invadido por manifestantes mascarados, munidos de pedras, folhetos e slogans: “A Internet não é um lugar para revoluções”, “Não à primavera árabe em  Donetsk!”.

 

Por razões de segurança, o evento foi cancelado. No momento da nossa exposição, em junho de 2013, porém, as coisas pareciam ter se acalmado e a instituição seguia com a sua programação normal. Ninguém imaginava que um ano depois o espaço seria tomado, e que, num peculiar deslocamento semântico, as mídias russas passariam a se referir às atividades separatistas da Ucrânia como Primavera Russa.


Até hoje, a instituição não pôde retirar do território invadido equipamentos e obras de arte. Boa parte dos membros da equipe foi forçada a deixar suas casas. Operando em um escritório provisório, em Kiev, a instituição discute como seguir com seu trabalho. “É desorientador perder o próprio espaço, já que toda nossa atividade estava centrada ao redor de Donetsk e nas instalações da fábrica.”, afirma Victoria Ivanova, curadora.

 

O fechamento foi uma forma de silenciar um dos poucos espaços de discussão critica na região, num momento em que a mídia parece encorajar pontos de vista extremamente polarizados e simplistas. Uma das primeiras ações da DPR foi tomar a torre de televisão de Donetsk, e desde então os moradores assistem apenas às notícias da mídia local, ligada à DPR, e aos canais de notícias russos – que têm repetido com insistência fatos bastante duvidosos, tais como “a União Européia construiu um campo de extermínio para os falantes de russo na Ucrânia”. O edifício em questão era, na realidade, um centro de processamento de passaportes, construído como parte da lenta inclusão da Ucrânia na Comunidade Européia.

 

Não é à toa que a região encara o passado soviético com mais simpatia do que o restante do país: muitas das tensões remontam ao período de abertura nos anos 90. Violência urbana, expropriações, ataques surpresa e raptos eram a realidade de Donetsk na época. Os vencedores passaram compor grande parte da atual elite econômica na Ucrânia. O grupo de Rinat Akhmetov, em particular, iniciaria um império multibilionário que levaria à formação do Partido das Regiões, ao qual pertencia o presidente derrubado, Victor Yanukovich.

 

No momento em que escrevo esse artigo, a situação se torna cada vez mais tensa. Milícias armadas pró-russas de todo o país encontram-se nesse momento concentradas em Donetsk: elas e o governo atribuem-se mutuamente a autoria dos bombardeios sobre apartamentos de civis. Enquanto a cidade que conhecemos se torna palco dessa comédia sangrenta e trágica, nos perguntamos qual pode ser o papel dos artistas e dos espaços de arte num contexto geopolítico perigosamente ambíguo, em que proliferam ânimos exaltados, imagens distorcidas e discursos cada vez mais simplistas.
 

*Artista e bacharel em Filosofia pela USP