Há 25 anos, entre abril e junho de 1989, ocorreu na China um dos mais emblemáticos episódios do século XX. O Protesto de Tiananmen, ou Massacre da Praça da Paz Celestial, mudou a história da política e da economia chinesas, deixou um número indefinido de mortos e feridos e relegou ao mundo a icônica imagem do manifestante solitário impedindo a passagem de tanques de guerra. Ainda um tabu para os chineses, impedidos de procurar pelo assunto na internet, o episódio começou como um protesto pacífico.
 
Eram centenas de milhares pessoas nas ruas: grupos de discussão espalhados pela enorme praça, cartazes, megafones, estudantes escrevendo petições para levar ao Congresso Nacional. Causas diferentes e muitas vezes conflitantes eram representadas pelos civis, que tinham em comum a luta por participação política e por igualdade.
 
A diversidade de políticas defendidas pelos manifestantes espelhava uma crise no interior do próprio governo. Desde 1986, o Comitê Central do Partido Comunista Chinês estava dividido entre uma linha tida como mais conservadora e uma mais modernizadora. Ambas tinham como objetivo o desenvolvimento econômico nos moldes capitalistas e a integração com o mercado financeiro internacional, mas divergiam quanto ao modo de fazê-lo.
 
A ala mais conservadora propunha manter o controle direto do Estado na administração dos investimentos internacionais e a propriedade estatal das indústrias de base. Já a outra, propunha a liberalização imediata dos preços (até então em parte controlados pelo Estado), a privatização das indústrias nacionais e o combate à corrupção no interior do Partido. É importante destacar que as duas facções não defendiam programas específicos para lidar com a crescente desigualdade social, que atingia níveis extremos desde 1985.
 
Entre os manifestantes, havia em comum demandas por instrumentos de participação democrática na política. A maioria não tinha clareza se o caminho deveria ser a abertura econômica ou a manutenção do controle político estatal do mercado. O que se sabia era que a inflação estava crescendo e os direitos sociais  eram restringidos.
 
O movimento foi detonado em  abril de 1989 com a morte por doença cardíaca de um membro do Comitê Central do Partido Comunista, Hu Yaobang (1915-1989). Representante da ala modernizadora do Partido, Hu havia sido forçado a renunciar ao cargo de secretário-geral em janeiro de 1987, após não reprimir eficazmente, na visão do governo, uma manifestação estudantil.
 
Logo após sua morte, em 1989, um grupo de estudantes e professores universitários alinhados à ala modernizadora organizou uma manifestação pedindo que o nome de Hu Yaobang fosse reabilitado postumamente. O pedido foi negado pelo Congresso e em 20 de abril foi emitida ordem para dissolução da manifestação.
 
As manifestações, porém, não pararam. Pelo contrário, trabalhadores que lutavam também por justiça social e igualdade política e econômica juntaram-se ao movimento. Em 19 de maio, o Partido Comunista declarou Estado de Exceção e deu ordens para a ocupação militar da capital, Pequim.
 
A reação do governo surpreendeu os manifestantes. Afinal, o Partido Comunista declarava-se oficialmente como representante do povo e a maioria das pessoas não imaginava que o PCC se voltaria contra elas. Quando o Exército Popular de Libertação entrou na cidade em 20 de maio, milhares de civis – muitos dos quais nem haviam participado das manifestações até então – inundaram as ruas, interceptando os caminhões cheios de soldados. 
 
Por três dias, os caminhões estiveram entre uma multidão que ia e vinha tentando convencê-los a não prosseguir com a repressão, levando-lhes comida e água, e também seus avós e filhos pequenos para os convencerem de que os manifestantes poderiam ser uma irmã, pai ou filha. Após esse bloqueio pacífico, as tropas se retiraram sob aplausos da população, em 24 de maio.
 
Mas a operação não terminou ali. Em 4 de junho, quando o Partido emitiu a ordem de dispersão das manifestações, o Exército estava munido de armamento pesado e de tanques de guerra vindos de outras províncias. Ora, dentro de um tanque ou à distância, um soldado não pode sequer ouvir os apelos da população. A tecnologia impediu  a negociação direta com os civis. Houve tiros, barricadas, atropelamentos. Até hoje, não se sabe ao certo o saldo da violência, que diverge entre 300 e 3 mil mortos. Também é desconhecida a identidade do manifestante solitário e seu destino.
 
A brutalidade tinha um propósito: aterrorizar e afirmar que nenhuma tentativa de participação política direta seria tolerada. E a mensagem das armas foi efetiva. Após o massacre, reinou o silêncio. As medidas modernizadoras da economia foram aprofundadas, com a abertura a investimentos estrangeiros, a eliminação de muitos seguros sociais estatais e a privatização de indústrias.
 
Na China até hoje apenas uma minoria conhece esse episódio. No Ocidente, por outro lado, a imagem dos homens contra os tanques foi explorada para reafirmar que o socialismo é um sistema baseado na repressão. O que não se diz é que tamanha violência foi empregada justamente para implementação do capitalismo na China. Após 1989, o governo reforçou a opção ao investimento estrangeiro e precisou de trabalhadores submissos para operar máquinas na fábrica do mundo. 
 
*Andrea Piazzaroli Longobardi é pesquisadora da Revolução Cultural Chinesa no doutorado no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo.

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Livro


A História da China Popular no Século XX, de Shu Sheng. Editora FGV. 
Rio de Janeiro, 2012.

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Publicado na edição 89, de agosto de 2014 
Disponível em: <https://www.cartanaescola.com.br/single/show/399> Acesso em: 26 Ago. 2014.